Não, não somos todos Charlie!
Passado o momento de terror, que condeno veementemente, e de oportunismo que todos tivemos em mostrar que vivemos em democracia, e porque ainda acredito que podemos ser livres na escrita, creio que chegou o momento de esclarecer alguns pontos.
Não, não somos todos Charlie!
Não somos livres de escrever. Não temos uma imprensa livre. E sim, continuo a estranhar a exibição da tarja negra com a frase "Je Suis Charlie" por algumas pessoas, alguns diretores de jornais, que muito contribuem para que a imprensa não seja realmente livre em Portugal.
Sim, sei que são afirmações pesadas, mas também são pensadas. Nada está a ser escrito sem conhecimento de causa e estou consciente das dificuldades profissionais destas afirmações. Já as sinto hoje em dia porque desde que abracei esta profissão que o faço com espírito de liberdade e sou conhecido por dizer o que penso, por fazer frente a algumas pessoas que cavalgam nesta onda de aparente liberdade. Mas por ser assim, dificilmente serei diretor de um jornal!
E falo da imprensa em Portugal, é a que conheço por dentro. Há diretores de jornais, com quem tive discordâncias no passado, por não concordar com a falha de pagamentos a estagiários, por exemplo, e que hoje vestem a pele de cordeirinhos ofendidos. Mas apesar de acreditar que as pessoas podem mudar, um lobo será sempre um lobo. Assim surja a oportunidade!
Não, não somos todos Charlie!
Há os que morreram a sê-lo, há os que vivem de joelhos porque as contas no final do mês têm de ser pagas. Mas enquanto os jornalistas não lutarem por aquilo que é um direito demorático, vamos continuar a ter os lobos, vestidos de cordeiros a controlar o rebanho. A dar dentadinha aqui e ali, a sorrir para o lado como se fosse normal, e os outros a olhar para o ar para não serem mordidos também.
Nas conversas informais, os jornalistas falam das pressões. Dos artigos que não conseguiram escrever porque os "tios" pagam a publicidade no jornal, porque a ameaça de um processo em tribunal é demasiado pesado para o orçamento do jornal, porque o acionista deve uns favores ao visado na notícia.
Sim, pode custar, mas quem está dentro do furacão reconhece estes momentos. Não há um único jornalista, digno desse nome, que possa renunciar a estes fatos. Sim, estou a escrever e a pensar que consequências isto pode trazer para a minha carreira. Sinto-me um pouco como antes do 25 de abril, quando era preciso pesar bem as consequências antes de comentar o regime.
Quando mesmo depois da Revolução de Abril, dois anos depois, os meus pais ainda me aconselhavam a ter cuidado com o que dizia: "nem a brincar digas isso a ninguém. Nunca se sabe quem pode estar a ouvir".
O conselho continua válido mas hoje sei que não estou a brincar e que está toda a gente a ouvir!
Não, não sou Charlie. Mas gostava de ser!
Paulo M. Guerrinha